terça-feira, 24 de novembro de 2009

Oportuno registro e lições

“Relatos de Um Desastre” foi lançado ontem pela Defesa Civil do Estado/SC. Justo e necessário que toda o episódio de agonia, capacidade de superação da população e das forças oficiais ganhasse um registro histórico. Além desses valores humanos, entendo que o livro possa ser um testemunho científico e técnico-ambiental para que nossas autoridades e nós mesmos nos coloquemos mais responsavelmente a frente da tarefa de defender mais e melhor o Planeta, evitando novos “recados” da mãe Natureza.
Que este mês - um ano após a tragédia que todos vivemos – sirva para um alerta: me preocupa, muitas vezes, ouvir dos nossos homens públicos, de uns tempos pra cá. Quando há algo errado, que exija auto-crítica, providências, correção de rumos e determinação ética nas mudanças de comportamento, ou se diz que “...não era de nosso conhecimento”, “...não se sabia de nada”, ou “...não foi uma falha e sim um incidente”.
A publicação dos “Relatos” traz, além de fotos impressionantes do desastre das chuvas e deslizamentos, o livro conta com as narrativas de 19 jornalistas que participaram das coberturas em jornal, televisão e rádio. Participo da edição, como âncora da Rádio Guarujá.
Dedico o que escrevi ao bravo povo catarinense, ao dedicado e corajoso Major Márcio Alves e aos meus colegas de trabalho que mostraram a que vieram nesta profissão apaixonante e de fé.

Sofrimento e emoção, na lama e no ar
Chovia muito, o mês todo daquele novembro de 2008. Era mais um mês chuvoso como estávamos acostumados a ver todos os anos na pré-temporada de verão.
Mas aquela chuva não parava e se intensificava e parecia ganhar força a cada dia que avançava e a Capital e toda Região Metropolitana já mostrava uma exaustão da sua infra-estrutura.
A conseqüência primeira disso era o sofrimento a mais da população carente que vive em áreas invadidas, sem água e luz oficiais, sem ruas, sem esgoto, sem quase nada. Aquele clima cinzento e chuvoso também se alastrava para a Região Norte e Vale do Itajaí. Os milímetros de chuva, calculados pela Defesa Civil e pela Epagri/Ciram, se acumulavam. A preocupação e a tensão de todos também.
No final de novembro a ficha caiu geral. Não era um período de chuvas normal, como estávamos acostumados. Aquilo seria bem mais e iria se transformar numa tragédia, jamais vista pelas pessoas desta geração.
Era sábado e ele amanheceu barulhento, de águas, trovões, raios, ventos não tão fortes, mas podia se sentir que ele trazia um recado da natureza, um alerta frio e cruel de quem estava com a paciência esgotada de tanto desrespeito, de violações, de exageros. A velha natureza responderia a todos os nossos desaforos e o aviso começava a chegar de forma mais violenta naquele sábado.
Todos os sinais de transbordamento de rios, de esgotamento total dos nossos precários sistemas de escoamento pluvial eram vistos em cada informe da Defesa Civil do Estado.
A Rádio Guarujá AM de Florianópolis está acostumada, há 66 anos, a falar de futebol e esporte nos finais de semana. Pois naquele sábado a história começava bem diferente. O Carlos Damião, então coordenador de Jornalismo, iniciou uma cobertura ainda acanhada com a convocação de parte dos repórteres e engrossou as informações do programa que apresentava, o Revista Guarujá, pela manhã. Mais tarde, já à noite, o experiente Damião - de tantas coberturas do gênero pelo jornal O Estado e outros tantos veículos que passou, ligaria para cada um de nós da equipe do rádio jornalismo da Guarujá para nos prevenir que no domingo, muito provavelmente, iríamos trabalhar duro. Não deu outra. Já nas primeiras horas do dia 30, Carlos Damião comandava o “time” inteiro: Marcelo Fernandes, Polidoro Júnior, Cléber Pedra, Fábia Haffermann, Raquel Santi, Carol Gonzaga, Hívan Tonsic, Júlio Castro, Iuri Grechi e os técnicos Edson Garcia, Luiz Carlos Silva, Smaley Cúrsio, Andrey Silva, Paulo Renato, além dos bravos lá dos transmissores, o Jorge, Valvito, o Francisco, o Darci e o Rogério que não param dia e noite.
Amanhecemos o domingo vivendo o clima de dificuldades. Tivemos que usar o Estúdio B de gravações no lugar do tradicional do “Ar”, que estava alagado por conta das chuvas e das fortes rajadas de vento que arrancaram parte do telhado do Edifício Tiradentes, provocando este acidente no décimo andar, onde funcionamos, no centro da Cidade.
Como manda o bom jornalismo nestas ocasiões, a produção teve de ser engrossada para trazer informações e encontrar as pessoas certas e colocá-las no ar. As entrevistas se alternavam com as intervenções dos repórteres espalhados por toda a Região.
Em frente ao Estúdio B, para trabalhar melhor, improvisamos a mesa da recepção e ali foram instalados mais computadores e telefones e assim a produção ganhou mais mobilidade e contato direto com os âncoras.
Deste fim de semana em diante foram cerca de 30 dias de cobertura especial, compatibilizando a programação normal com o trabalho incansável de toda equipe do jornalismo.Fizemos o que a Guarujá sempre fez há quase sete décadas, mas de forma concentrada. Prestamos serviços, ajudamos as comunidades, cobramos a ação das autoridades e fomos parceiros de todas as iniciativas possíveis de solidariedade aos atingidos daquela enchente. Colocamos no ar os freqüentes alertas e os comandos da Defesa Civil e praticamente transformamos a sua sede em estúdio avançado de nossa programação.
À noite, no programa Jornal da Noite, eu e o repórter Júlio Castro fazíamos um rescaldo das notícias do dia, com matérias e entrevistas ao vivo. Uma delas foi inesquecível. Era cerca de onze da noite e o bravo Major Márcio Moreira Alves, chefe da Defesa Civil do Estado, nos atendia pelo telefone, ainda na sede do Continente. Com evidente cansaço de vários dias mal dormidos e longe de casa, o Major não conseguiu esconder a emoção ao relatar o que via no comando daquela catástrofe: “Marcelo, o que estamos vendo é algo que nunca experimentamos. A todo momento famílias inteiras são destroçadas, perdendo seus entes queridos, crianças perdidas, mulheres e idosos desesperados pelas perdas humanas e materiais, é um cenário de guerra. Precisamos ter muita força, muita concentração, muito profissionalismo para não nos envolvermos no drama de cada um. Temos que ser fortes. Talvez sejamos a única esperança para estas pessoas atingidas pelas chuvas. Eu queria aproveitar este momento, tarde da noite, para mandar um recado para a minha família, a minha esposa e meus filhos, que não me enxergam já faz dias, que me perdoem pela ausência, mas sei que eles vão entender a situação que passamos, eles sabem que essas pessoas que foram vítimas deste desastre terrível estão precisando da nosso trabalho e do nosso apoio. A nossa missão, para eles, é uma questão de vida ou morte. Por isso eu peço desculpas pela ausência em casa, mas queria dizer aqui pela Guarujá que a cada minuto deste nosso trabalho difícil nos inspiramos na família, no sorriso deles, no amor deles e na confiança que eles tem em nós”, dizia o Major Márcio Alves, chorando e interrompendo sua ligação conosco para recompor sua emoção incontida.
Sabíamos que nossa cobertura na Grande Florianópolis, registrava um sofrimento intenso da comunidade com aquelas enchentes de novembro e dezembro/2008, mas não era a história mais dramática. Não muito longe, no Vale do Itajaí, em Blumenau, em Penha, na Ilhota, morros inteiros como o do Baú, “derretiam como sorvete”, assim relatava em nosso microfone um dos soldados do exército em operação no local.
Num desses momentos agudos na Região do Vale, transmitimos o depoimento de um oficial de resgate da Guarda Nacional que trabalhava de helicóptero, içando famílias inteiras do olho daquela terra movediça: “é um cenário terrível, muito duro pra todos nós, é uma verdadeira prova de fogo ver tanto sofrimento. Mas é importante que as pessoas atendam nossas orientações para que se evitem mais tragédias. Eu estou frustrado neste momento, abalado mesmo. Agora pouco vi uma família inteira ser soterrada lá no Baú. Ontem eu tinha tirado todos eles de lá, eles não queriam sair de casa, tiramos eles a força de lá, foi uma situação de muito desespero, tiramos todos ontem com grande dificuldade. Agora, estávamos lá resgatando mais pessoas, com essa chuva toda, com ventos fortes, pouca visão, perigo de mais deslizamentos e avistamos a mesma família de ontem, eles resolveram voltar para casa, contrariando nossa orientação, e vimos eles serem sugados pela lama, sem poder fazer nada, nós estamos chocados, muito tristes, é muito difícil ver tudo isso...” contou o comandante pelo telefone. No estúdio da Guarujá a emoção foi geral e ninguém arriscou dizer uma palavra. Pedi o intervalo comercial do jeito que pude e sai para tomar uma água.
Aqui em Florianópolis, a anti-vedete daquele show de horrores era a subida do morro do Cacupé, às margens da SC 401, numa curva onde um espetacular deslizamento engoliu a estrada, um caminhão e a vida de seu motorista. Dias depois do evento quase indescritível no rádio, cena crível só com imagens, as máquinas tentavam recompor a via, mas o cenário devastador transformava os robustos caminhões das empreiteiras em carrinhos de brinquedo.
Resolvi ir até o local e vi a impressionante revolta da natureza. Quando cheguei na redação da Guarujá contei a cena no ar e escrevi no Blog, sob o título “Medo na encosta”. Postei assim: “Estive na terça à tarde (28) ali na SC 401, na altura do Cacupé, onde desmoronou aquele monte de terra sobre a estrada. É espantoso o volume, é assustadora a cena, parece que ali houve um bombardeio. Fiquei impressionado. Ao chegar, encostei minha moto logo ao pé da encosta que sobrou. Olhei bem no alto, inclinando o olhar em 180 graus, respeitando aquele morro rebelde, bravo e bêbado d’água. Ele parecia falar, “não me agüento mais de pé…” Olhei e tive medo. Peguei a moto e sai de perto, como me afastando de um “alien” exausto, sonolento e fora de controle. Estacionei mais longe e fiquei sobressaltado na cena, observando o movimento das máquinas trabalhando nos escombros. Notei que o motorista da retroescavadeira avançava sobre as terras e pedras revoltas como quem cutuca uma onça com vara curta. Um olho na caçamba, outro na enorme encosta trêmula, drogada… Pensei ali na "Rosa de Hiroxima" de Vinicius, cantada pelos Secos & Molhados, aquelas encostas “… rotas alteradas; pensem nas feridas; como rosas cálidas…”
Escrevo este pequeno relato sobre as enchentes e o desastre que sofremos no final daquele 2008 com atraso. Conto com a compreensão dos editores desta obra e entrego meu material em cima da hora. Coincidência ou não, escrevo aqui com a atenção e preocupação também, voltada para uma nova cobertura da Guarujá sobre cheias, novamente, em todo o Estado, quase um ano depois. A Epagri/Ciram prevê que vamos ter mais chuvas nas próximas semanas. Torço não precisar escrever novo relato.
Florianópolis, 29 de setembro de 2009.

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